Adpesp aponta equívocos na segurança pública no combate ao crime organizado

Entidade policial envia carta aberta à população de SP

I – Apoiamos o combate ao crime organizado em defesa da legalidade democrática.

Cumpre pontuar que a ADPESP apoia o Regime Democrático, pois é o regime que propicia a salutar e responsável convivência e alternância de grupos políticos na Administração Pública. Sobretudo, apoia o primado da legalidade, como fundamento primeiro do Estado de Direito, arduamente defendido pelos Delegados de Polícia, dia e noite, nos plantões das delegacias de Polícia, sendo, indubitavelmente, a autoridade policial a primeira a garantir os Direitos Fundamentais da população de São Paulo. Sob tais bases, vindicamos sua defesa como meio necessário para um intransigente, eficaz, eficiente e efetivo combate ao crime organizado.

Com essas luzes, não podemos nos calar frente ao descumprimento da Lei por instituições de Estado.

O Ministério Público de São Paulo (MP-SP) deflagrou na manhã de 9 de abril de 2024 a operação “Fim da Linha”, para “desbaratar duas organizações criminosas” que estariam lavando “recursos ilícitos” do PCC (Primeiro Comando da Capital) por intermédio das empresas de ônibus Transwolff e Upbus. Longe de criticarmos os fins da Operação, mas sim os meios de realização.

As prisões e apreensões ali havidas são fruto de um trabalho conjunto do MP-SP, Receita Federal, da Polícia Militar do Estado de São Paulo (PM-SP), do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e da Polícia Civil do Estado de São Paulo (PC-SP).

Curial que se diga: em um Estado de Direito a colheita e guarda das provas, chamada juridicamente de “cadeia de custódia”, deve obrigatoriamente ser realizada com técnica e legalidade, sob pena de vulnerarmos princípios comezinhos de dignidade humana. Tal responsabilidade, pela Lei, compete à Polícia Judiciária.

Porém, em total arrepio a estes primados da lei e em uma atuação que também se distanciou da Ética, a Operação Fim da Linha, de maneira propositada, foi deflagrada sem qualquer participação das autoridades policiais que estavam, já de muito tempo, colaborando com as investigações, trabalhando duro, perdendo horas de convívio com suas famílias, tudo visando o combate ao crime organizado em prol da sociedade bandeirante.

II – O Sistema de Segurança e sua base Constitucional.

                            A Constituição Federal de 1988 dispõe sobre segurança pública a partir do seu artigo 144, estabelecendo que se trata de um direito e responsabilidade de todos, mas um dever para o Estado. Em outras palavras, todo indivíduo tem o direito fundamental à segurança e, sem embargo, também tem o dever de auxiliar na sua promoção. Já no que se refere ao Estado, não estamos diante de um direito, mas de uma obrigação, emanada do próprio texto constitucional.

                            Assim, com o objetivo de dar cumprimento a este mandado constitucional, o Estado se vale dos seguintes órgãos: Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Polícia Ferroviária Federal, Polícias Civis, Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares e Polícias Penais. Destaque-se, todavia, que cada uma dessas instituições possui uma atribuição constitucional específica, o que deve ser observado sob pena de caracterizar-se uma ofensa à Constituição.

                            Pontuamos que atividades de polícia judiciária são privativas das Polícias Civis, sendo que a Polícia Militar, instituição de grande relevância dentro do capítulo da segurança pública, não tem atribuição para prática desses atos, salvo em se tratando de infração militar.

                            Com isso, reforçamos a necessidade de respeito e observância às regras legais e às instituições, sendo a distribuição constitucional de funções extremamente importante dentro de um Estado Democrático de Direito.

                            Conforme destacado acima, as atribuições constitucionais das polícias estão previstas no artigo 144, da Constituição da República, mais especificamente nos §§ 4º e 5º, senão vejamos:

  • 4º – às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.
  • 5º – Às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública; aos corpos de bombeiros militares, além das atribuições definidas em lei, incumbe a execução de atividades de defesa civil.

                            Frente ao exposto, percebemos que cabe à Polícia Militar a realização do patrulhamento ostensivo, cujo objetivo é a preservação da ordem pública por meio de ações preventivas, ou seja, aquelas praticadas antes da ocorrência do evento criminoso. À Polícias Civil, por outro lado, cabem as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais.

                            Nesse ponto é importante que façamos uma distinção entre as atividades de polícia investigativa e judiciária. Por polícia investigativa devemos compreender aquelas ações diretamente ligadas à colheita de provas e elementos de informação quanto à autoria e materialidade criminosa. A expressão polícia judiciária, por seu turno, se relaciona com as atividades de auxílio ao Poder Judiciário, que se materializa no cumprimento de suas ordens relativas à execução de mandados de prisão, busca e apreensão e demais medidas cautelares, além de outras ordens judiciais expedidas no interesse da investigação criminal.

                            Percebe-se, portanto, que as atividade ligadas ao descobrimento de um crime e todas as ordens emanadas do Poder Judiciário devem ser de responsabilidade das Polícia Civil em âmbito estadual. A Polícia Militar, por sua vez, tem atribuição para realizar tais atividades de maneira excepcional, quando se tratar, reitera-se,  de crime militar.

                            Não podemos olvidar que, com base no princípio da legalidade pública, os agentes públicos só podem fazer aquilo que está previsto na lei. Na legalidade privada, por outro lado, o particular pode fazer tudo aquilo que não estiver proibido por lei, prevalecendo, assim, a autonomia da vontade.

                            Tendo em vista que os agentes estatais não têm vontade autônoma, eles devem se restringir à lei, que, por seu turno, representa a “vontade geral”, manifestada por meio dos representantes do povo, que é o legítimo titular da coisa pública. Nesse contexto, o princípio da legalidade pública tem estrita ligação com o postulado da indisponibilidade do interesse público, que deve pautar a conduta do Estado e de todos os seus agentes.

                            Assim, considerando que o interesse público é determinado pela lei e pela própria Constituição da República, não é suficiente a ausência de proibição em lei para que o servidor público possa agir, é necessária a existência de uma lei que autorize ou determine certa conduta.

                            Com base nessas premissas, podemos afirmar que qualquer atividade realizada por outros atores do sistema de Segurança pública que extrapole seu âmbito constitucional de atuação, especialmente no que se refere às competências atribuídas à polícia investigativa e judiciária, deve ser considerada inconstitucional.

III – Da Ilegalidade na deflagração da Operação “Fim da Linha”

                            A deflagração da “fim da Linha”, conduzida pelo MP/SP está eivada de ilegadade. Isso porque os mandados de prisão e de busca e apreensão foram cumpridos pela Polícia Militar, em franca usurpação da competência constitucional e legal deferida, pelo legislador, à Polícia Civil.

                            Vejam que para que seja adotada uma medida cautelar o critério se deve, primeiramente, estabelecer a medida adequada de acordo com a necessidade do caso concreto e sempre com base nos elementos colhidos durante a investigação.

                            Na Operação Fim da Linha os mandados foram cumpridos pela Polícia Militar, que diga-se uma vez mais, não tem atribuição constitucional para a realização de atos de polícia judiciária ou investigativa, salvo em se tratando de infração militar.

O ordenamento jurídico é claro. A nova Lei Orgânica Nacional das Polícias Civis, diploma legal justamente colocado em vigor para não permitir, exatamente, o ocorrido na Operação, tem em seu artigo 6º da Lei n. 14.735/23, a seguinte dicção:

“Art. 6º Compete à polícia civil, ressalvadas a competência da União e as infrações penais militares, executar privativamente as funções de polícia judiciária civil e de apuração de infrações penais, a serem materializadas em inquérito policial ou em outro procedimento de investigação, e, especificamente:

I – cumprir mandados de prisão, mandados de busca e apreensão e demais medidas cautelares, bem como ordens judiciais expedidas no interesse da investigação criminal;

II – garantir a preservação dos locais de ocorrência da infração penal e controlar o acesso de pessoas a eles, sem prejuízo da atuação de outros órgãos policiais, no âmbito de suas atribuições legais, nas situações de flagrante delito”.

Nesse caminhar, temos que o cumprimento dos mandados de prisão e busca e apreensão decorrentes de diligências realizadas pela Polícia Militar são absolutamente ilegais, não podendo ser admitidos dentro do nosso ordenamento jurídico. Esse é o preço que pagamos por vivermos em um Estado Democrático de Direito, onde todos devem obediência às leis e à Constituição. Não podemos admitir que a justiça seja alcançada a qualquer preço. Precisamos respeitar as instituições e, principalmente, as regras vigentes.

Para confirmar a atribuição legal das Polícias Civis para cumprimento de mandados de prisão e de busca e apreensão, a Lei Orgânica Nacional da Polícia Militar (Lei n. 14.751/23), em seu artigo 5º, III, expressamente estabelece que as Polícias Militares somente realizarão cumprimento de mandados de prisão e de busca e apreensão em crimes militares. Esta é a única possibilidade legal. Confira-se:

III – realizar a prevenção e a repressão dos ilícitos penais militares e cumprir mandados de prisão, busca e apreensão e demais medidas cautelares, bem como ordens judiciais expedidas no interesse da apuração criminal militar, da Justiça Militar dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, referentes à apuração das infrações penais militares praticadas pelos seus membros, ressalvada a competência da União;

Nesse sentido, vejam que o legislador positivou um pacto nacional, realizado no âmbito do congresso Nacional e Poder Executivo Federal, por meio de Leis Complementares Federais, inclusive com participação das entidades de classe representativas das carreiras policiais, visando a pacificação das forças de segurança, especialmente as atribuições da Polícia Militar e da Polícia Civil.

E, para não restar dúvida, gostaríamos de gizar que no tocante ao cumprimento dos mandados de prisão e mandados de busca e apreensão, houve todo um cuidado para não mais existir conflito e garantir a legalidade da colheita de provas, tudo o que foi olvidado na deflagração da Operação Fim da Linha.

IV – Operação Fim da Linha sob a perspectiva Ética

Ademais, nem legal, nem ética foi a atuação dos gestores das Operação Fim da Linha. A ética profissional é parte da ética geral, sendo a ciência que circunscreve os deveres dos profissionais. De vulto a questão quando os envolvidos são servidores públicos. A ética da responsabilidade, diria Max Weber (1985, pp. 113-4).

A verdade é que a ética profissional consagra condutas de senso comum profissional, como modelares para a reta conduta do profissional.

Diz Goffredo Telles Junior (1988, p. 236) que “uma ordem ética é sempre expressão de um processo histórico. Ela é, em verdade, uma construção do mundo da cultura. Em concreto, cada ordem ética é a atualização objetiva e a vivência daquilo que a comunidade, por convicção generalizada, resolveu qualificar de ético e de normal”.

Neste diapasão, o Código de Ética do Ministério Público, positivado pela Resolução n. 261, de 11 de abril de 2023, impõem aos doutos promotores e procuradores valores éticos, sendo necessário apontar a lhaneza no trato com os demais integrantes do sistema de Justiça, como previsto no artigo 9º da norma em testelha, in verbis:

“Art. 9º O membro do Ministério Público, no exercício de suas atribuições, assegurará igualdade de tratamento aos sujeitos do sistema de Justiça e a todos os cidadãos, e evitará qualquer espécie de tratamento discriminatório, injusto ou arbitrário”.       

A postura de cortesia e respeito é obrigatória, tanto que para além da obrigação ética prevista no artigo 9º acima citado, o Código de Ética do Ministério Público reserva um capítulo especial para o assunto. Confira-se:

“CAPÍTULO VII – CORTESIA E RESPEITO

Art. 23. O membro do Ministério Público agirá com cortesia na relação com os colegas, os magistrados, os advogados, os servidores, as partes, as testemunhas e todos aqueles com os quais se relacione institucionalmente, e promoverá especial respeito aos direitos fundamentais e às prerrogativas de todos os sujeitos do sistema de Justiça. Parágrafo único. O membro do Ministério Público utilizará linguagem escorreita, polida, respeitosa e compreensível.

Ainda, o regramento ético exige do Promotor de Justiça uma atuação com prudência, particularmente atento às consequências de seus atos e decisões, e zelando para que sejam racionalmente motivados à luz do ordenamento jurídico, a partir da consideração de todos os fatos, circunstâncias e alegações constantes dos processos, procedimentos ou feitos congêneres. Vejamos:

“CAPÍTULO VIII – PRUDÊNCIA E MOTIVAÇÃO RACIONAL

Art. 25. O membro do Ministério Público atuará com prudência, particularmente atento às consequências de seus atos e decisões, e zelando para que sejam racionalmente motivados à luz do ordenamento jurídico, a partir da consideração de todos os fatos, circunstâncias e alegações constantes dos processos, procedimentos ou feitos congêneres”.

Pois bem. Não há espaço para atuação arbitrária, desrespeitosa às prerrogativas dos sujeitos do sistema de Justiça ou imotivadas.

Pelas razões já delineadas, percebe-se com clareza solar que os comandos constitucionais e infraconstitucionais fixaram, conforme suas respectivas naturezas e características, as competências das Polícias Civis e Polícias Militares.

Desta forma, não há qualquer interpretação que possa conferir à Polícia Militar, dentro de sua competência, a atribuição de realizar, especialmente, o cumprimento de mandados de prisão e de busca e apreensão expedidos no interesse da investigação criminal.

Não há o que tergiversar.

O ocorrido aqui é perigoso, pois em verdade estamos assistindo instituições de Estado a se determinarem ao arrepio da Lei.

Em um Estado Democrático de Direito, não é admissível que Gestores Públicos conduzam operações em nome do Estado, vulnerando primados éticos e sobretudo a legalidade.

Este é nosso repúdio.

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